Enterre Seus Mortos - Ana Paula Maia

sexta-feira, julho 06, 2018 0 Comments A+ a-




   Edgar Wilson trabalha removendo animais mortos, da estrada ou de qualquer lugar onde seja chamado. Numa profissão que lida tão de perto com a morte, o personagem acaba vendo também muita coisa e, com isso, desenvolve uma visão peculiar sobre a realidade que o cerca. Ana Paula Maia narra Enterre seus mortos sob o ponto de vista desse personagem - embora se utilizando de um narrador onisciente (e julgador) na terceira pessoa, é sob o ponto de vista de Edgar Wilson que este narrador prefere ficar.
    Enterre seus mortos é romance narrado de forma seca e crua, que chega a chocar em alguns momentos, por cenas um tanto gráficas e pela atitude dos personagens frente a essas cenas. Praticamente contendo apenas com personagens homens endurecidos pela vida, a narrativa acaba espelhando os sentimentos e cinismos desses homens, em especial do protagonista, Edgar Wilson, um homem capaz de jogar um cachorro morto para ser triturado, limpar a mão no uniforme de trabalho e ir almoçar, sem perder o passo ou a calma. Tudo isso na primeira cena do livro, só para mostrar ao leitor com o que ele vai lidar.
    Ana Paula Maia é uma escritora que eu queria conhecer desde que vi uma reportagem da Folha sobre os livros dela. Embora não seja tão conhecida aqui no Brasil, Ana Paula é sucesso no exterior, tendo seus títulos traduzidos para sete países, inclusive os Estados Unidos. Quando recebi esse livro da Companhia das Letras, passei na frente na minha lista de leituras sem pensar duas vezes, queria conhecer essa prosa tão polêmica (a matéria fala de como alguns críticos brasileiros esnobaram o trabalho de Ana Paula Maia). O fato da capa ser tão bonita só me fez querer ler ainda mais. 

 "Olha para o alto e gira a cabeça de um lado para o outro na tentativa de encontrar algum vestígio, algum traço mínimo de verdade. Porém, não há nada no céu: nem fúria, nem anjos, nem santos. É um céu vazio, completamente sem cor e som. Inerte."
    Uma coisa relevante na biografia da autora é o fato dela ser ex-evangélica. Isso se reflete muito nesse livro, na forma irônica como o narrador vê os pastores e evangélicos que povoam as estradas e pregam para os pobres sobre a danação e o fim do mundo. Percebe-se nessas passagens a crítica que a autora tem a esse tipo de pessoas, que se dizem fiéis mas pregam uma salvação baseada em retribuição financeira. Apesar desses momentos de crítica à religião, o personagem principal parece ser religioso, se bem que não da forma tradicional. Edgar Wilson acredita no céu e no inferno e, de certa forma, também acredita em um Deus - embora não de uma forma muito tradicional.
    Outro personagem com certo destaque na obra é Tomás, um padre que foi excomungado devido a um homicídio que cometeu. Assim como Wilson, Tomás trabalha recolhendo animais mortos na estrada mas, nas horas vagas, faz batizados, extrema-unção e o que mais for necessário. No lugar onde vivem as pessoas estão pouco ligando se ele ainda é padre ou não.

 " - E eu tenho certeza de que nada nem ninguém me escuta. Deus ou o diabo, parece que nenhum dos dois está mais aqui."
    A autora não diz em nenhum momento o lugar exato onde a história se passa. Só sabemos que é um lugar bem pobre, com pessoas bastante religiosas e uma pedreira de calcário, uma mina de brita e uma fábrica de cimento. Parece ser um daqueles lugares esquecidos por Deus, onde coisas como lei, justiça não existem e a saúde pública é ineficaz - as pessoas morrem na estrada porque não há ambulâncias disponíveis para prestar socorro. O cenário dessa história poderia ser em qualquer país do mundo e também em nenhum deles mas, enquanto lia pensei no Brasil, embora alguns trechos me remeteram aquelas cidadezinhas americanas de beira de estrada.
   Ao longo do livro vamos acompanhando a rotina de Wilson como recolhedor de animais mortos na estrada, até que essa rotina é abalada pelo aparecimento de um corpo. À partir daí as coisas vão acontecendo de forma diferente na vida do personagem. 
   Não que Wilson comece a investigar ou coisa do tipo. Ele não quer justiça, apenas não suporta a ideia de deixar um corpo - seja humano ou animal - insepulto. É interessante perceber o interesse que esse personagem tem em dar um final digno para os mortos em contraste com o desinteresse que ele tem com o destino das pessoas ao redor. 

"Edgar Wilson nunca conheceu um trabalho que não estivesse ligado à morte. Sempre esteve um passo atrás dela, que invariavelmente encontra todos os homens, de maneira diferente. (...) Não sabe que espécie de fim esta reservado a ele. Mas diante dos mortos, seja humano, seja animal, ele não se mantém insensivel."
   Apesar de ser um livro relativamente curto, eu li Enterre Seus Mortos bem devagar, em pouco mais de uma semana. Acho que o conteúdo dele não é para ser absorvido de uma vez, por mais que o tom seco da autora sugira uma leitura rápida, o conteúdo do livro precisa de tempo para ser digerido. Não chega a ser nada extramente gráfico ou nojento - é só toda a enormidade da desolação que rodeia a vida dos personagens que as vezes fica difícil de aguentar. É tanta miséria, tanta coisa dando absurdamente errado, tanta gente de caráter duvidoso, que as vezes eu tive que deixar o livro descansar um pouco antes de retornar. 
   Ã‰ interessante acompanhar essa verdadeira saga que Wilson e Tomás vivem nas páginas finais do livro mas, ao mesmo tempo em que apreciei a leitura, senti falta de algo mais. O final é super coerente com todo o livro e com a própria personalidade do personagem a qual o narrador acompanha ao longo da história mas, por algum motivo, fiquei esperando algum tipo de clímax. Obviamente, eu não conheço bem Edgar Wilson porque fiquei esperando o tempo inteiro que ele perdesse seu ar blasé, algo que não aconteceu
   Mesmo com essa "decepção", Enterre Seus Mortos é um livro que valeu a pena ser lido. Há algo meio faroeste nessa história, talvez o fato de se passar em um lugar "sem lei", que achei bem interessante. Os personagens também são bem marcantes - fiquei com vontade de reencontrar Wilson em alguma outra história da autora (sei que ele aparece alguns livros dela), de forma que é bem provável que eu volte a ler Ana Paula Maia em algum momento, se não por agora. 
     Nota 7,5 - o livro é bom mas tirei meio ponto por essa "decepção" com o final. 
   
 "Um abutre descreve uma curva e do céu aponta para a terra, abre as asas e sua envergadura acoberta o fio de claridade que ilumina o rosto da mulher. Pousa sobre a cabeça da mulher em riste e equilibra-se, recolhendo novamente as asas para junto do corpo. Olha Edgar Wilson antes de inclinar a cabeça e bicar o olho direito da mulher. O abutre grana e ainda o encara. Só então bica outra vez o olho da mulher até arrancá-lo, mantendo-o preso no bico. Edgar Wilson suspende a espingarda de pressão, aponta e com um tiro acerta a ave em cheio; morta, cai próximo a seus pés." (pág 40)


Nascida no interior de SP, formada em Publicidade e Propaganda, sempre gostou de dar palpites sobre filmes, séries, animes, livros e o que mais assistir/ler. Autora do Blog "Resenhas e Outras Cositas Más" (Miss Carbono) e "Coisas de Karol". No Twitter fala de política, séries e da vida (não necessariamente nessa ordem). Siga: @karolro


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