O que faz uma biografia ser boa? - Dois livros e duas visões diferentes da homossexualidade
Uma biografia é um tipo de literatura muito específica.
Há pouco espaço para inventos e ficções – quanto mais famoso o biografado mais
as pessoas querem detalhes/dados/fotos do que ocorreu. Querem saber exatamente
o que aconteceu e, se tiver alguma história sórdida no meio dos fatos, também
não faz mal.
“Antes que Anoiteça”, é uma autobiografia com poucas
fotos mas cheia de detalhes. Nela, o escritor Reinaldo Arenas retrata a sua
vida antes, durante e após o regime cubano. Embora tenha começado apoiando
Castro, Arenas logo passa a discordar da ideologia vigente e tensão entre
escritor e governo é frequente, ainda mais por se tratar de um autor
homossexual, já que os homossexuais eram perseguidos em Cuba.
Enquanto lia “Antes que Anoiteça”, senti falta de maior
representação feminina. As menções a mulheres homossexuais não chegam ao número
de dedos de uma mão, o que me levou a procurar algum livro que preenchesse essa
lacuna. Foi aí que li “Flores Raras e Banalíssimas”.
Se a quantidade de fatos e a veracidade deles é o que faz
ser uma biografia boa, então "Flores Raras e Banalíssimas" não
deveria ser considerado um bom livro. A história, que busca retratar os 15 anos
do relacionamento entre Elizabeth Bishop e Lota de Macedo, carece de fontes nos
momentos mais cruciais da trama. As correspondências e agendas das personagens
principais não são o suficiente para retratar essa história em primeira mão: os
depoimentos que a autora do livro tem de amigos e pessoas que conviveram com o
casal na época é que dão a tônica de boa parte do livro.
Entretanto, assim como "Antes que anoiteça",
"Flores Raras..." também foi uma leitura que me impressionou muito.
Os dois livros não poderiam ser mais opostos e, no entanto, acho os dois
realmente bons.
Um dos aspectos que torna as duas biografias
interessantes é o mesmo que também faz com que dialoguem entre si, o retrato da
homossexualidade durante as décadas de 40, 50 e 60. Em "Antes que anoiteça" o retrato
da repressão aos homossexuais é tão intenso quanto ao das aventuras sexuais
vividas pelo narrador ao longo desse período. Muitos trechos podem ser até
mesmo chocantes para os desavisados, mas é um retrato cru daquele período e
daquelas pessoas, principalmente Arenas.
"Flores Raras..."
é muito mais discreto. Como relato contado por diversas fontes e não pelas duas
protagonistas da história, o livro carece do acesso à intimidade dos
personagens que há em “Antes que Anoiteça”. Mesmo assim, são justamente esses
relatos que deram a resposta para a minha dúvida "como era vista a homossexualidade feminina nas décadas de 40, 50
e 60?" a resposta é que não era vista. Nenhum dos entrevistados sequer
tinha ideia do relacionamento entre as protagonistas, até que o caso estourou
na década de 90.
Nesse sentido, são dois livros com visões contrastantes
da homossexualidade, embora tenham se passado, senão no mesmo espaço, no mesmo
período. O primeiro há uma ostentação desse estilo de vida, apesar (e talvez em
razão) de toda a perseguição. Já no segundo não há perseguição alguma mas os
relacionamentos são muito mais discretos.
Isso torna “Antes que Anoiteça” melhor que “Flores Raras...”?
De forma alguma, dentro de suas possibilidades são excelentes livros que
cumprem o objetivo de contar a história de uma pessoa (ou pessoas) e, de
quebra, dão um contexto histórico muito rico e interessante.
As pessoas retratadas facilitam para que seja assim. Os
dois livros nos apresentam personagens interessantes e, acima de tudo, humanos.
Não dá pra concordar e simpatizar com tudo o que Reinaldo (ou Elizabeth, ou
Lota) faz no livro. Ainda assim, não dá para terminar qualquer um desses livros
sem uma dose de simpatia (ou, ao menos, empatia) por esses personagens.
Acho que o que faz uma biografia boa é esse fator humano.
Seja ela autobiográfica ou retratando apenas um período da vida de uma pessoa,
considero uma obra nesse estilo boa quando consegue situar o leitor na vida das
pessoas retratadas e fazer com que nos coloquemos na pele dele, com que
entendamos seus dilemas e conflitos, mesmo discordando de suas atitudes.
Tanto "Flores raras e Banalissimas" quanto
"Antes que anoiteça" parecem entender que essa empatia não vem de
retratar heróis e heroínas mas seres humanos, com suas falhas e incertezas.
P.S.: Os dois livros tem filmes inspirados neles, mas não assisti.
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