O processo - Franz Kafka (Resenha)
"Alguém certamente havia caluniado Josef K. pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum."
Assim começa o romance "O processo", com a detenção do protagonista, que ocorre (por coincidência ou não) no dia do seu aniversário de 30 anos. A partir desse momento a vida de K. embora em muitos aspectos pareça ser a mesma, também se torna uma sequência de acontecimentos improváveis. K. não sabe de que foi acusado, quem o acusou, qual é a punição e, como a história se passa do ponto de vista desse personagem (apesar de ser utilizada a terceira pessoa), o leitor sabe muito menos.
"O Processo" não tem uma linguagem particularmente difÃcil mas é como se acompanhassemos uma história da qual não sabemos todos os fatos. O mesmo também ocorre com o personagem principal, K. mas até mesmo ele age de uma forma que, para quem está lendo o livro, é completamente incompreensÃvel.
Desde o primeiro capÃtulo percebi que esse livro tem algo de sonho, a irrealidade e senso de absurdo que só os sonhos têm. Se tudo fosse um sonho muitas coisas seriam explicadas mas facilmente na história mas um sonho não seria tão longo e nem seria uma explicação muito razoável para o que está acontecendo com K.
Quando li "Lojas de Canelas" do autor polonês Bruno Schulz vi uma introdução que comparava o autor a Kafka e, finalmente, entendi o porquê. O absurdo permeia a obra dos dois autores e o tom de sonho, com personagens que se comportam de maneira bizarra em alguns momentos e perfeitamente normal em outros, também está presente na obra dos dois autores. Mesmo assim acho que Schulz divaga um pouco mais dentro de si mesmo, enquanto Kafka é mais objetivo que o autor polonês. Mesmo as divagações de Kafka não são tão ininteligÃveis quanto as de Schulz.
Acompanhar o andamento do processo de K. e a vida desse personagem é, em grande parte, fazer uma viagem ao subconsciente. Não sou psicanalista ou nada do tipo mas alguns capÃtulos, entre eles um chamado "O Espancador" tem uma subjetividade que até alguém leigo como eu consegue vizualizar. Mais do que sonho, a matéria que traz o absurdo pra essa história são representações dos pensamentos mais profundos e secretos do autor - talvez por isso Kafka tenha pedido que sua obra fosse destruÃda após sua morte, esses livros revelam demais sobre ele próprio. O fato de que o personagem principal tem como nome a primeira letra do sobrenome do autor, também reforça esse sentimento de que K. é uma representação do próprio Kafka.
Embora nunca tenha deixado de me sentir confusa lendo essa história, uma hora o estranhamento fica mais suportável e é possivel seguir a trama com mais facilidade. K. é um homem repleto de culpa, defeitos e assuntos mal resolvidos, de forma que, mesmo que ele continue se dizendo inocente e não haja no livro nenhum prova em um sentido ou em outro - sequer há uma acusação - é difÃcil não enxergá-lo culpado de alguma coisa. O desfecho parece uma confirmação de que K. acaba por condenar a si próprio com sua passividade ante o que lhe acontece.
Claro, essa interpretação se junta a várias outras que vários autores já realizaram ao longo dos anos. O sentido real de "O processo" talvez seja para sempre desconhecido, assim como ficarão incompletos os capÃtulos começados e não terminados pelo autor. Mas, como o proprio livro diz, não devemos nos prender muito a interpretações já que o texto é imutável. "As opiniões são muitas vezes uma expressão de desespero" por essa imutabilidade.
Apesar dessa ambiguidade toda, gostei de conhecer Kafka e pretendo ler outros livros desse autor. Recomendo aos que querem un bom desafio literário - material e não formal como o de autores como James Joyce, por exemplo. Kafka da forma mais simples possÃvel e, ainda sim, ficamos completamente confusos com suas histórias.
Nota 8 - um bom livro.
P.S.: O posfácio de Modesto Carone é interessante e elucidativo, apresentando algumas teorias a respeito do sentido do texto. Entre outras coisas, o Carone fala sobre o diálogo entre o livro de Kafka e "Crime e Castigo" de Dostoievski. À conferir, já que ainda não li essa obra do autor russo.
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